A usina hidrelétrica Santa Isabel, planejada para instalação no rio Araguaia, na divisa dos estados do Tocantins e Pará, impactará dezenas de sítios arqueológicos, entre eles a Ilha dos Martírios. Suas gravuras rupestres dispersam-se por uma vasta área que avança sobre o rio, quase unindo suas duas margens, e que será soterrada e submersa com o enchimento do lago. Trata-se de um gigantesco sítio arqueológico, um marco na paisagem tradicional do Araguaia e conhecido no meio literário ao menos desde o século XVIII.
A usina hidrelétrica Santa Isabel, planejada para instalação no rio Araguaia, na divisa dos estados do Tocantins e Pará, impactará dezenas de sítios arqueológicos, entre eles a Ilha dos Martírios. Suas gravuras rupestres dispersam-se por uma vasta área que avança sobre o rio, quase unindo suas duas margens, e que será soterrada e submersa com o enchimento do lago. Trata-se de um gigantesco sítio arqueológico, um marco na paisagem tradicional do Araguaia e conhecido no meio literário ao menos desde o século XVIII.
Santa Isabel encontra-se em fase de obtenção de Licença Prévia, o que, em tese, significa que o empreendimento ainda pode ser considerado inviável. Precisamos discutir maneiras eficazes de interferir em situações como essa, em defesa de que nem todo sítio arqueológico pode ser destruído e que nem toda destruição pode ser mitigada. Temos no Brasil um (cada vez menos) rico patrimônio arqueológico cujo manejo, na atual e eufórica política de aceleração do crescimento econômico, não parece estar levando em consideração a impossibilidade de renovação e a irreversibilidade da perda desse patrimônio. Como primeira investida, a diretoria da SAB compartilha sua preocupação com suas sócias e sócios, com o Ministério da Cultura, com o Iphan e com o Ministério Público Federal. A carta reproduzida abaixo foi enviada a esses órgãos públicos como manifestação de preocupação desta Sociedade com o empreendimento e seus impactos arqueológicos (trata-se de uma versão sintética de um texto mais informativo que será em breve disponibilizado na página da SAB).
Ao Ministro de Estado da Cultura, Sr. João Luiz Silva Ferreira;
Ao Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Sr. Luiz Fernando de Almeida;
A Diretora do Centro Nacional de Arqueologia, Sra. Maria Clara Migliacio;
A Subprocuradora Geral da República, Sra. Débora Duprat
Prezados Senhores,
Prezadas Senhoras,
Vimos manifestar a preocupação desta diretoria da Sociedade de Arqueologia Brasileira com o empreendimento Usina Hidrelétrica Santa Isabel, no rio Araguaia (Tocantins/Pará) cuja construção fará submergir o sítio arqueológico Ilha dos Martírios. Tal manifestação é motivada pela avaliação do sítio como um componente altamente significativo do patrimônio arqueológico brasileiro tanto do ponto de vista científico quanto histórico e social. Nesse sentido, consideramos sua perda um dano irreparável à base de recursos arqueológicos do patrimônio cultural nacional.
A Ilha dos Martírios tem potencial para ser um dos (senão o) maiores sítios de arte rupestre do Brasil. Suas gravuras podem ser observadas margeando quase toda a Ilha (cerca de 70-80 ha em novembro, com volume médio de águas no rio), no seu interior e na margem direita do Araguaia. O sítio tem sido estudado de modo episódico nos últimos cem anos, mas escavações arqueológicas nunca foram feitas no local, não há datações disponíveis, sequer estudos sistemáticos das figuras. Pelo que temos conhecimento do contexto brasileiro de expressões rupestres pré-coloniais, a Ilha dos Martírios se alinha a um pequeno conjunto de sítios dispersos principalmente pelos planaltos centro-nordestinos. Esses sítios rupestres são relativos a uma ocupação humana portadora de um sistema de comunicação visual altamente elaborado, mas do qual sabemos muito pouco e para o qual não temos ainda nenhuma cronologia incontestável. E como não dispomos, seja no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, de técnicas de ampla aplicação para datação direta de gravuras rupestres, a submersão do sítio impedirá inclusive que ele seja datado no futuro, no caso dessas técnicas serem desenvolvidas.
Conhecidas ao menos desde o início do século XVIII, data do mais antigo relato, as gravuras da Ilha foram primeiro identificadas como os sinais da Paixão de Cristo (o galo, a coroa de espinhos, os cravos do suplício), justificando assim o nome do local. Martírios é um dos sítios de arte rupestre que ao longo dos séculos XVI ao XVIII subsidiou argumentos legitimadores da conquista européia, atestando a presença anterior de cristãos no novo mundo. Nesses últimos séculos a Ilha apareceu em vários relatos de naturalistas, exploradores e eruditos, ganhando notoriedade dentro e fora do território nacional. À relevância científica de Martírios se soma então o fato da Ilha ser também um sítio histórico.
O local certamente também tem significados sociais para as comunidades atuais do Araguaia e nos preocupa o fato de que talvez a significância social do sítio arqueológico não seja avaliada. Mesmo sem estudos específicos, sabemos que as interpretações sobre Martírios circularam e circulam não apenas nos livros, mas também de boca em boca pelo rio e seus afluentes. Alguns moradores atuais dão as mesmas identificações para as figuras da Ilha que podem ser vistas em relatos locais recolhidos e publicados por estudiosos ao menos desde a década de 1930. Essas permanências e recorrências evidenciam a participação do sítio e suas figuras na tradição oral e sugerem que a Ilha continua fazendo sentido no presente, que as pessoas comuns que moram ao longo do baixo Araguaia inseriram-na e mantiveram-na em redes próprias de significado.
O tamanho do sítio arqueológico e a profusão de gravuras espalhadas por seus suportes já indica a significância do local para os habitantes pré-coloniais do Araguaia. No mínimo desde os últimos 250 anos, diferentes discursos sobre Martírios têm sido elaborados e registrados, são discursos populares, eruditos, científicos. Essas narrativas, sempre em produção, contribuíram e contribuem para a formação do patrimônio cultural brasileiro. Considerando os motivos apontados para a preservação in situ da Ilha dos Martírios, a Sociedade de Arqueologia Brasileira reforça sua preocupação com a ameaça de dano irreparável que a hidrelétrica Santa Isabel causará a esse patrimônio de caráter único. Se o patrimônio arqueológico é um recurso cultural não renovável, o potencial da Ilha para construção e comunicação de conhecimento, uso social e até outras formas de desenvolvimento econômico - por exemplo, através do turismo arqueológico sustentável - é infinitamente amplificável e renovável. De fato, acreditamos que a Ilha dos Martírios reúne atributos que a qualificam para tombamento nacional e não para destruição.
Loredana Ribeiro
| Tesoureira - Sociedade de Arqueologia Brasileira