Para introduzir a discussão do tema selecionado para este número apresentamos um resumo de três documentos oriundos de diferentes países, mas todos relacionados à definição de parâmetros de qualidade para realização da atividade arqueológica.
Selecionamos para análise as diretrizes apresentadas pelas seguintes organizações: a) Register for Professional Archaeologists, associação profissional de arqueologia dos EUA que regulamenta a realização de trabalhos de consultoria em Arqueologia neste país e oferece diretrizes que devem ser seguidas por todos os profissionais envolvidos nesta atividade; b) The Institute for Archaeologists, organização profissional inglesa auto-reguladora aberta a todos os arqueólogos e outros envolvidos na proteção e compreensão do ambiente histórico visando a promoção de padrões de qualidade e ética para conservar, gerenciar e compreender o patrimônio; c) Ministério da Cultura do Canadá, que elaborou um Guia de padrões e propostas para consultoria em Arqueologia, o qual define passo a passo o processo e as atividades de devem ser realizadas em todos os estágios do trabalho de campo, publicação e divulgação dos resultados de cada trabalho de consultoria em Arqueologia, os quais são utilizados como referência para concessão de licenças e análise dos relatórios pelos técnicos especializados do Ministério.
RPA – REGISTER FOR PROFESSIONAL ARCHAEOLOGISTS
De maneira similar a atual situação brasileira, nos EUA , em resposta a um boom na quantidade de pesquisas arqueológicas, passou a ser discutida a necessidade da elaboração de um código explícito sobre ética e padrões de desempenho de pesquisa. Em 1976 foi fundada uma sociedade de arqueólogos profissionais (SOPA), com a elaboração e adoção de padrões de ética e pesquisa. Entretanto a baixa aderência nacional de arqueólogos decorrente do entendimento que a organização estava ligada exclusivamente a profissionais envolvidos na arqueologia de contrato, levou a criação, em 1998, do RPA - Register for Professional Archaeologists (Registro para Arqueólogos Profissionais - www.rpanet.org). O registro, criado em meio à preocupação com a formação de profissionais que praticam a arqueologia só permite a afiliação de profissionais com a qualificação adequada. Para fazer parte do Registro o arqueólogo deve provar ser qualificado para exercer a profissão e concordar em acatar o código de ética e padrões de desempenho de pesquisa. Os membros, para serem aceitos, devem possuir diploma/título em arqueologia (especialização, mestrado ou doutorado) comprovando experiência tanto em campo como em laboratório. O Registro tem o apoio das quatro mais importantes associações de arqueólogos do país: SAA (Sociedade para Arqueologia Americana). SHA (Sociedade de Arqueologia Histórica), AAA (Associação Americana de Antropologia), e AIA (Instituto Arqueológico da América) e tem em seus quadros representantes dessas sociedades.
O código de conduta formulado pelos integrantes do Registro identifica responsabilidades dos profissionais em relação ao público, colegas, funcionários, alunos, empregadores e clientes. O código determina de forma extremamente geral formas ideais e inaceitáveis de conduta, tais como: assegurar ou dar o crédito ao trabalho de terceiros, proteger de maneira ativa a conservação de sítios arqueológicos, proteger os interesses de clientes enquanto estes forem coerentes com o código, não cometer plágio, não se envolver na recuperação de materiais arqueológicos para futura comercialização, entre outros. O texto que discorre sobre os padrões de qualidade de pesquisa contém seis quesitos principais enumerando padrões mínimos de qualidade de pesquisa a serem seguidos. Similarmente ao código de conduta o texto é abrangente e cita entre outros a necessidade de preparação adequada antes de iniciar um projeto, a obrigação de obter licenças governamentais para as intervenções, curadoria dos materiais recuperados e a obrigação de publicar resultados obtidos.
Em caso de desrespeito ao código de conduta ou aos padrões de desempenho de pesquisa aciona-se o coordenador de queixas (Grievance Coordinator) que investigará o ocorrido. Se uma violação efetivamente ocorreu, e é decorrente de mal-entendido, descuido ou desconhecimento das regras o coordenador deve tentar um meio de negociar com ambas as partes, senão a questão passa a ser estudada por um comitê especialmente formado para analisar a queixa e propor possíveis sanções. Os casos em que o coordenador de queixas acredita que não houve quebra do código ou em que o processo resulte em uma advertência são tratados de maneira privada visando preservar os envolvidos. No entanto processos que levem a censura, suspensão ou expulsão do profissional são levados a público. Espera-se que dessa maneira tais situações sejam vistas como exemplos que não devem ser seguidos, estimulando boa conduta na comunidade.
O Registro provê um meio para que um arqueólogo seja responsabilizado por seu comportamento profissional (queixas e punições somente serão efetuadas por e para profissionais ligados ao RPA). Um lado menos conhecido do RPA envolve a preocupação em verificar se sítios-escola estão de acordo com padrões profissionais, a organização de fóruns e simpósios sobre ética e a participação em discussões de política pública que envolvam a pesquisa arqueológica. A adesão ao Registro, entretanto, ainda é extremamente baixaentre pesquisadores ligados ao meio acadêmico apesar de constantes esforços para reverter essa situação. Muitos questionam a necessidade de pertencer ao Registro e pagar taxas anuais para aderir a um código de ética que seria senso comum e compreendido como prática padrão entre os membros da categoria.
IFA – INSTITUTE FOR ARCHAEOLOGISTS
O IFA, Institute for Archaeologists é uma associação Inglesa que visa promover padrões de qualidade e ética para conservar, gerenciar e compreender o patrimônio, assim como promover o seu usufruto como fonte de entretenimento. O instituto tem menos de 30 anos de existência e já conta com mais de 2800 membros individuais e 60 organizações. Consiste em uma organização profissional auto-reguladora aberta a todos os arqueólogos e outros envolvidos na proteção e compreensão do ambiente histórico. A principal atuação do Instituto está na aprovação e compartilhamento de um código de conduta e estabelecimento de padrões de qualidade e diretrizes além do registro de organizações. O Instituto foi criado como “Institute of Field Archaeologists”, mas posteriormente tornou-se Institute for Archaeologists, marcando seu intuito de contemplar toda a diversidade de atuações da arqueologia, como os curadores, acadêmicos, consultores em museus, institutos de pesquisa, empresas, etc. Por ser um instituto auto-regulador, isto é não regulamentado pelo Estado, quanto mais pessoas ou organizações se filiarem, mais forte se torna e mais poder tem em influenciar as tomadas de decisão e assim garantir que apenas profissionais éticos e competentes realizem trabalhos arqueológicos. Para o IFA “arqueologia é o estudo e cuidado de evidências físicas do passado humano. Essa marca das atividades humanas do passado sobre o mundo natural desde tempos pre-históricos em diante é o produto de um processo interativo que criou os lugares onde nós vivemos e trabalhamos agora e define o ambiente histórico como um recurso vulnerável e cada vez mais escasso”.
Tendo em vista a necessidade de preservação desse recurso o Instituto cria diretrizes para a prática dos arqueólogos e interessados em conservação do patrimônio através do estabelecimento de códigos de conduta, ética e diretrizes específicas para todas as atuações dos arqueólogos. Tais critérios servem para avaliar a confiabilidade das propostas metodológicas desenvolvidas no âmbito da disciplina arqueológica e foram desenvolvidas e são constantemente atualizadas de acordo com diversos debates e propostas aprovadas por um conselho criado pelo instituto e constantemente debatido com seus membros. Atuações fora das diretrizes podem ser realizadas, uma vez que justificadas e comprovadas melhores do que as apresentadas em determinadas circunstâncias.
Os códigos, padrões de qualidade e diretrizes são divididos basicamente em duas categorias, que podem ser vistos em maior detalhe no site http://www.archaeologists.net/codes/ifa: by-laws (estatuto) e standards (normas). Como estatuto do Instituto encontramos o código de conduta, o código aprovado de prática para regulamentar os arranjos contratuais em arqueologia, um código de disciplina e regulamentos para a filiação de organização e grupos. O código de conduta visa “promover padrões de conduta e auto-disciplina requerido de um membro no interesse do público e na busca de uma pesquisa arqueológica”. O código proposto está pautado em cinco princípios, cada um dos quais tem regras e observações da prática associadas.
Sob as normas encontramos as diretrizes para atuação de qualidade em praticamente todas as esferas de atuação do arqueólogo, como: diretrizes para trabalhos de gabinete; avaliação de campo; escavação; observação arqueológica prévia; investigação arqueológica e o registro de construção ou estruturas; coleta, documentação, conservação e pesquisa de vestígios arqueológicos; gerenciamento de um ambiente histórico; registro arqueológico náutico e reconstrução; criação, compilação, transferência e deposição de arquivos arqueológicos; prospecção geofísica; arqueologia forense. Há também um atestado de anuência a ser aceito pelo membro sobre a política do Instituto no que tange a oportunidades trabalhistas iguais, saúde e segurança, uso de voluntários e estudantes em projetos arqueológico e proteção ambiental e controle de riscos.
A importância da atuação do IFA se deve a clareza e objetividade de seu código de conduta, normas e diretrizes. Através desse procedimento torna-se possível a realização de avaliações de propostas metodológicas e éticas em grande escala, garantindo trabalhos de qualidade. Não devemos ver tais diretrizes como formas limitadas de análise, tais procedimentos garantem a qualidade mínima dos trabalhos e podem ser implantados de maneira distinta de acordo com aspectos particulares e cada contexto. A adesão a tal código de conduta não torna o processo menos particularista e criativo, mas sim garante que cada escolha metodológica e ética esteja embasada em parâmetros mínimos de qualidade. A importância é dada a necessidade de preservar o patrimônio arqueológico visto aqui como um recurso limitado e esgotável e, portanto passível de extinção.
DRAF STANDARD AND GUIDELINES FOR CONSULTANT ARCHAEOLOGISTS
O ùltimo documento ao qual gostaríamos de fazer referência é o Draf Standard and Guidelines for Consultant Archaeologists, elaborado pelo Ministério da Cultura do Canadá em 2009. Este documento foi elaborado para consultores em Arqueologia desenvolvendo pesquisas de campo em Ontario. Segundo o Ontario Heritage Act qualquer um que queira realizar pesquisas arqueológicas em Ontario deve atender os seguintes critérios: 1. obter uma licença do Ministério da Cultura; 2. Arquivar um relatório no Ministério da Cultura contendo detalhes do trabalho de campo efetuado em cada projeto; 3. Arquivar dados acerca de cada sítio identificado em cada projeto para o Ministério da Cultura. Mas o que nos parece mais necessário frisar neste caso é que, uma condição para obter a licença arqueológica para pesquisa de campo em Ontario é seguir as Normas e Diretrizes definidas pelo Ministério da Cultura.
As Normas apresentam os requisitos técnicos, as etapas, processos e relatórios básicos para condução de trabalho de campo arqueológico. Envolvem práticas sobre as quais os consultores em arqueologia de Ontario concordaram serem necessárias para todos os projetos e servem como base para emissão de licença pelo Ministério da Cultura. As Diretrizes oferem recomendações ou conselhos para uma boa prática que vão além das Normas ou refere-se a práticas que podem ser adotadas por um consultor como forma de abordagem alternativa em condições especiais. Seguir as Diretrizes é uma questão de juljulgamento profissional, mas quando é necessário adotar práticas que vão para além das Normas, a recomendação é pela escolha das Diretrizes propostas neste documento. Caso elas não sejam adotadas é necessário haver uma justificativa que indique os benefícios da estratégia alternativa implementada.
Essas Normas e Diretrizes oferecem aos consultores uma série de benefícios: 1. uma sólida referência a respeito de como devem desempenhar e registrar os trabalhos de campo no contexto de “land use development”, com o objetivo de garantir que a conservação arqueológica em Ontario seja realizada em um nível consistente e apropriado; 2. um guia adicional para realizar e documentar certos aspectos do trabalho de campo arqueológico e práticas opcionais consideradas aceitáveis sob condições especiais; 3. um entendimento claro do processo de revisão de relatórios e de expectativas do Ministério da Cultura, de forma a assegurar que este processo de revisão seja transparente, eficiente e ágil.
Este documento substitui o documento vigente anteriormente e foi elaborado da seguinte maneira: 1. Com base no documento pré-existente (Archaeological Assesment Technical Guidelines); 2. Curso realizado em 1998 – Conserving a Future for Our Past: Archaeology, Land Use Planning and Development; 3. Respostas a um questionário a respeito das melhores práticas de mitigação de impactos do desenvolvimento, colocado em circulação pelo Minstério em 1996; 4. Pesquisa extensiva a respeito de Normas e Diretrizes na jurisdição Canadense e internacional; 5. Contribuições de um grupo técnico representando uma ampla amostragem de arqueólogos com conhecimento técnico específico e conhecimento de uma ampla gama de contextos nos quais os trabalhos de consultoria em arqueologia são realizados ;6. Contribuições de versões preliminares elaboradas com base em informações regionais e retornos de grupos de trabalho realizados entre 2004-2006; 7. sugestões de arqueólogos, comunidades nativas, comunidades locais, ediferentes tipos de organizações.
Os revisores do Ministério da Cultura usam as Normas e Diretrizes para garantir que os projetos alcançam as condições para manter uma licença arqueológica. A autoridade que aprova o desenvolvimento incorpora a revisão do Ministério sobre o relatório de campo como uma indicação de que o interesse das províncias nos sitios arqueológicos foi atingido, conforme solicitado pelo processo de planejamento e desenvolvimento do uso da terra.
Há um ítem específico a respeito de segurança e saúde na realização dos trabalhos de campo em Arqueologia – considerado como local de trabalho e portanto sujeito às mesmas leis e regulamentos governamentais vigentes em outros ramos de atividade. Chama-se especial atenção à realização frequente de atividades de campo em locais onde há exposição a riscos de contaminação tóxica ou acidentes, sendo necessária uma atenção especial para com a segurança dos trabalhadores. Já no caso de vestigios esqueletais humanos é necessário avisar as autoridades competentes até obtenção de uma licença específica.
Nossa intenção com este texto foi apresentar as alternativas encontradas por outros países que passaram por um crescimento vertiginoso na demanda e diversificação das atividades realizadas por arqueólogos, requerendo, em todos os casos, uma tomada de posição pela comunidade de arqueólogos no sentido de criar normas para regulamentação da pesquisa. Isso certamente passa por uma discussão sobre ética e compromisso, definindo uma noção muito clara de responsabilidade social e política do Arqueólogo frente a preservação e conservação do Patrimônio Arqueológico. Conforme já mencionamos, o objetivo aqui não é optar por um ou outro modelo apresentado e transportá-lo para o contexto nacional, mas utilizá-los como estímulo para reflexão no sentido de criarmos nossos próprios mecanismos e propostas de auto-regulação a fim de garantir padrões de qualidade e excelência para plena realização de nossa profissão.
Lucas Bueno, Daniela Klokler, Juliana Machado