Transparência em debate.

  • PDF

A “REVOLUÇÃO INGLESA”

Em recente artigo intitulado “As florestas brasileiras e a arqueologia inglesa” o jornalista Fernando Reinach (2010) comentou a revolução pela qual passa a arqueologia inglesa, revolução esta em muitos termos análoga às mudanças recentes da arqueologia no Brasil. Após séculos de gradual acúmulo de dados lentamente garimpados por pesquisadores universitários e financiados por dinheiro público, a arqueologia inglesa está sendo agora inundada por uma enxurrada de dados gerados pela iniciativa privada.

Segundo o jornalista, na Inglaterra, até 1990, “se você estivesse construindo um puxadinho no terreno da sua casa ou um novo Shopping Center e, durante a escavação das fundações, encontrasse um muro romano ou artefatos da época do bronze você podia jogar concreto sobre os achados arqueológicos ou vender o que encontrasse”. Mas em 1990, o governo inglês aprovou uma lei que obriga todos os executores de projetos de construção civil a analisar, do ponto de vista arqueológico, o que encontrarem durante suas escavações. A nova lei obriga o construtor a contratar arqueólogos para fazer um levantamento do que foi encontrado e produzir um relatório detalhado. O resultado é que antes de 1990 havia menos de 100 arqueólogos trabalhando no setor privado, hoje existem mais de 7.000 especialistas. O investimento privado em escavações arqueológicas já soma US$ 220 milhões por ano, quase 10 vezes mais que o gasto pelo governo para financiar pesquisadores universitários.

Esta revolução é bastante similar ao que vem acontecendo na arqueologia no Brasil nas últimas décadas, apesar de não termos balanços com números muito precisos. Nossa legislação não deixa nada a dever para a inglesa quando se trata de regulamentar a proteção do patrimônio e o licenciamento de empreendimentos com potencial impacto sobre o patrimônio arqueológico. Aliás, nossa legislação é ao mesmo tempo é também um reflexo das transformações radicais pelas quais passou a arqueologia no Brasil nos últimos 20 anos. Enquanto a Portaria 07 de 1988 visava apenas regulamentar a concessão de autorizações de pesquisas, até então predominantemente acadêmicas, a partir de dezembro de 2002 (portaria Iphan 230/02) a regulamentação visou sobretudo regulamentar os procedimentos para o licenciamento de empreendimentos potencialmente geradores de impactos ao meio sócio-cultural, no qual se insere o patrimônio arqueológico.

Um balanço feito a partir deste “turning point” de 2002 para o período que se segue retrata processos muito semelhantes ao da “revolução inglesa” relatada por Reinach. Com base no número de concessões de pesquisas expedidas entre 2002 e 2009, nota-se um aumento cumulativode cerca de 20% ao ano, crescimento este estreitamente relacionado aos programas de desenvolvimento do país, onde o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) tem tido um impacto direto na movimentação de recursos para os licenciamentos (Zanettini, 2009).

Calcula-se que o Iphan licencie hoje ,em média, um projeto por dia e que o número de profissionais envolvidos em projetos arqueológicos para licenciamento de empreendimentos tenha subido de 300 para 3000. As autorizações de pesquisa arqueológica para projetos de cunho estritamente acadêmico não ultrapassam 10% deste total, e o grosso da produção arqueológica está hoje registrada nos relatórios das pesquisas para licenciamento e não mais nas dissertações, teses, revistas e livros acadêmicos.

Na Inglaterra, como aqui, esta revolução vem acompanhada de preocupações com a qualidade das pesquisas. O fato destes documentos não serem publicados em esferas acadêmicas acabou por encobrir a baixa qualidade dos métodos de registro de campo, a falta de esforços para se desenhar sistemas de amostragem mais eficientes e, sobretudo, a ausência de análises interpretativas que permitissem uma avaliação da real relevância arqueológica dos achados. A solução encontrada pelos ingleses é a obrigatoriedade destes relatórios serem disponibilizados em bancos de dados públicos, o que facilita o acesso e força uma melhora gradativa na qualidade dos dados. É aí que o paralelo entre a arqueologia inglesa e a brasileira termina.

Segundo Reinach, a natureza propriamente revolucionária das mudanças pelas quais passa a arqueologia inglesa não reside no aumento de pesquisas, nas altas somas de investimentos privados na arqueologia, nem na proliferação dos profissionais da área. Está sim no impacto surpreendente que a recente disponibilização dos relatórios em bancos de dados públicos vem causando sobre o que já se conhecia da pré-história inglesa.

Desde que disponibilizados em esfera pública, os dados arqueológicos vem sendo sistematicamente vasculhados por cientistas, resultando em inúmeras e novas interpretações sobre um passado que se julgava mais do que conhecido.

Transparência:um parâmetro de qualidade

Os efeitos que a transparência da pesquisa pode ter sobre os resultados e avanços científicos de uma disciplina não é uma novidade e não se restringe só à arqueologia. Muito se tem escrito sobre as pontes que podem ser feitas entre os interesses científicos, públicos e privados, sobre a importância de circulação de dados e os aportes que bancos de dados públicos podem trazer a todos estes interesses.

A ideia básica é que a transparência acaba por funcionar como um mecanismo de auto-regulação, controle e avaliação, estabelecendo critérios e padrões de qualidade, de forma semelhante aos mecanismos de competitividade de mercado O desafio, neste caso é sempre eleger a arena de moderação da informação para que esta transparência possa de fato estimular uma melhoria na qualidade científica das pesquisas e não apenas uma janela de divulgação da arqueologia empresarial (Willems e van Dries, 2006).

Na prática da arqueologia de contrato no Brasil, os relatórios de pesquisa exigidos pela portaria No. 230 de 2002 são concebidos como a compensação real da perda física do patrimônio arqueológico. Segundo o artigo 6º da referida portaria :

§ 2° - O resultado esperado é um relatório detalhado que especifique as atividades desenvolvidas em campo e em laboratório e apresente os resultados científicos dos esforços despendidos em termos de produção de conhecimento sobre arqueologia da área de estudo. Assim, a perda física dos sítios arqueológicos poderá ser efetivamente compensada pela incorporação dos conhecimentos produzidos à Memória Nacional. (grifo nosso)

Por isso, respeitando-se os direitos autorais, os órgãos reguladores recomendam o livre acesso tanto aos relatórios e como aos bens arqueológicos resgatados, sobretudo quando se trata de facilitar o acesso a outros arqueólogos que atuarão na área ou em áreas próximas. A recomendação internacional da Carta de Nova Delhi, da qual o Brasil é signatário, é a seguinte: “Observadas as disposições do artigo 24, os serviços arqueológicos nacionais deveriam facilitar, na medida do possível, a consulta a sua documentação e o acesso a seus depósitos arqueológicos aos pesquisadores e especialistas qualificados, sobretudo aos que obtiveramobtiveram uma concessão para um determinado sítio ou desejam obtê-la.”

Na prática, a disponibilização dos relatórios de pesquisa à comunidade arqueológica tem se dado de forma semirestrita e irregular, variando entre os órgãos regionais e, em geral, apenas aos arqueólogos licenciados. Talvez isso se deva à ambiguidade da própria legislação, conforme apontou Marise Campos de Souza (2006): “Há a necessidade de definição clara, por parte deste Instituto, das regras para a Arqueologia, unificando os diversos entendimentos e práticas realizados pelas Superintendências Regionais que, em algum momento, podem divergir. Exemplificando:... em atenção ao que dispõe a legislação, qual a forma da publicação a se realizar para informar a comunidade sobre o bem estudado,como se definir o público alvo, ou mesmo a quantidade de exemplares necessários para a publicação em questão.”

Mas, como dissemos anteriormente, a arena ideal de compartilhamento das informações dentro da comunidade arqueológica talvez não deva ser a do órgão publico fiscalizador, isto é, do Iphan, uma vez que os esforços para construir, atualizar e disponibilizar ao público o Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos parecem atingir limites que vão além de sua capacidade operacional (e, por isso mesmo, devem ser amplamente reconhecidos). No triângulo de relações entre empreendedores, arqueólogos e órgãos públicos reguladores é preciso encontrar uma maneira de disponibilizar os dados arqueológicos de uma forma transparente, ágil e descomprometida com interesses dos empreendimentos, das empresas de arqueologia e das políticas desenvolvimentistas do governo.

Na academia, a qualidade da produção científica de uma disciplina é em geral regulada por procedimentos que estimulam e recompensam a excelência do trabalho acadêmico, tais quais encontros científicos, as publicações especializadas com sistemas de peer review, os prêmios científicos e etc. Como nos lembra Simon Schwartzman, é possível caracterizar a cultura organizacional da área acadêmica e científica pela grande autonomia e liberdade de ação dos pesquisadores-seniores,pela flexibilidade nos mecanismos de controle das atividades quotidianas, e pela transparência e publicidade em relação aos resultados obtidos (grifo nosso). Em contraste, as organizações burocráticas e empresariais tendem a ser mais fechadas, mais típico talvez do serviço público, que é a falta absoluta de critérios externos de avaliação e padrões de qualidade” (Schwartzman, 2002).

Contudo, estes instrumentos regulatórios da academia talvez não sejam adequados ou eficientes para atuar como parâmetro de qualidade para pesquisas arqueológicas feitas na esfera empresarial, mesmo que fiscalizada por órgãos públicos, como o Iphan. Outros critérios além do mérito e da qualidade científica entram em jogo, tais quais a eficácia da aplicação de metodologias específicas para se enfrentar as contingências e pressões típicas da arqueologia de contrato; o cumprimento da legislação relativa às exigências específicas para o licenciamento de empreendimentos, além das dinâmicas de um mercado que se torna cada vez mais competitivo.

Além disso, o volume das pesquisas realizadas é enorme e a natureza dos dados, quase sempre, muito primários, torna o formato dos relatórios pouco adequado para serem apresentados na esfera acadêmica, onde interpretação e síntese, que requerem mais tempo, são requisitos fundamentais da linguagem científica. Mesmo quando utilizados na produção acadêmica, isto não tem necessariamente compensado o fato de que a maior parte dos dados levantados nos projetos arqueológicos de licenciamento permaneça desconhecida e sem divulgação no seio da comunidade científica.

Uma proposta a ser debatida

Hoje, na atual “era digital”, quando milhares de bibliotecas digitais temáticas se organizam informalmente através da reunião de arquivos em formatos facilmente acessíveis, como em pdf, porque não reunirmos os relatórios de pesquisa arqueológica em uma plataforma minimamente organizada por estados e municípios, à qual toda a comunidade científica arqueológica poderia ter acesso?

Uma vez assim publicados, ou seja, tornados públicos, os direitos autorais estariam garantidos pela própria comunidade que os compartilha. Se os autores entenderem que a publicação dos dados possa vir a comprometer o ineditismo de trabalhos científicos em curso, poderá optar por não compartilhá-los, ou fazê-lo em um momento posterior. Talvez seja interessante lembramos aqui as práticas que a mesma Carta de Nova Delhi recomenda em relação à propriedade científica, direitos e obrigações do pesquisador: “O Estado concedente deveria garantir ao pesquisador a propriedade científica de suas descobertas durante um prazo razoável.

O Estado concedente deveria impor ao pesquisador a obrigação de publicar, no prazo previsto pelo contrato de concessão, ou na falta dele, em um prazo razoável, os resultados de seus trabalhos. Esse prazo não deveria ser superior a dois anos, no que diz respeito respeito aos relatórios preliminares (grifo nosso). Durante um período de cinco anos após a descoberta, as autoridades arqueológicas competentes deveriam se empenhar em não liberar para estudo detalhado o conjunto de objetos provenientes das pesquisas nem a documentação científica a ela referente, a não ser com autorização por escrito do pesquisador. Essas autoridades deveriam impedir nas mesmas condições a fotografia ou a reprodução do material arqueológico ainda inédito. Para permitir, se for o caso, uma dupla publicação simultânea de seu relatório preliminar, o pesquisador deveria, a pedido de tais autoridades, colocar a sua disposição cópia do texto desse relatório. As publicações científicas sobre as pesquisas arqueológicas editadas em um idioma de difusão restrita deveriam ser acompanhadas de um sumário e, se possível, da tradução do quadro de matérias e das legendas das ilustrações em uma língua mais difundida.”

De qualquer forma, este parece um projeto que só poderia ter sucesso com base no interesse voluntário, isto é, não mandatório, dos participantes, deixando a critério dos próprios arqueólogos a decisão dos conteúdos a serem compartilhados e o momento que julgam ideal para fazê-lo. Por outro lado, o sucesso do projeto depende também da adesão, ainda que voluntária, de um número significativo, o maior possível, de arqueólogos envolvidos na prática daarqueologia de contrato. De volta à questão da arena ideal para se veicular este vasto corpo de dados e atingir a comunidade científica de arqueólogos pesquisadores no Brasil, a Sociedade de Arqueologia Brasileira talvez se constitua como a melhor alternativa. Primeiro, porque é uma sociedade independente das esferas empresariais, governamentais e acadêmicas e, segundo, por ter sido historicamente o principal fórum de discussão para preocupações referentes à qualidade científica das práticas da arqueologia no país. A iniciativa fica aqui então proposta para o amplo debate pela comunidade de arqueólogos, para que pesemos todas as suas implicações, todos os prós e contras, certamente não contemplados neste breve artigo.

Cristiana Barreto
| Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

Referências Bibliográficas

Reinach, F. 2010 As florestas brasileiras e a arqueologia inglesa.
Jornal O Estado de São Paulo, edição de 08/07/2010.

Schwartzman, S. 2002 A Pesquisa Científica e o Interesse Público. Revista Brasileira de Inovação (Rio de Janeiro), vol. 1, número 2, pp. 361-395.

Souza, M. C. 2006 Uma visão da abrangência da gestão.

Comentários (0)Add Comment

Escreva seu Comentário
menor | maior

security code
Escreva os caracteres mostrados


busy



Outros Artigos: