Segundo o dicionário Aurélio, a palavra “repatriamento” deriva do latim (re + patria) e significa trazer de volta ou regressar para o lugar de origem, terra ou aldeia natal (Holanda Ferreira 2004). No caso do repatriamento de bens arqueológicos a sociedades indígenas no Brasil, trata-se de repatriar bens culturais materiais a povos originários, isto é, a povos cujo direito é indissociável de suas práticas culturais e antecede ao próprio direito estatal brasileiro, ou seja, à ordem jurídica vigente. Esta afirmativa leva em conta o princípio do indigenato, instituição jurídica luso-brasileira nascida no período colonial e presente na legislação em vigor, conforme consta no Art. 231 da Carta Constitucional de 1988 (ver Afonso da Silva 2001; Marés de Souza Filho 1994).
Neste caso em particular, estamos diante de um tema complexo, polêmico e atual. Por isso temos de debatê-lo exaustivamente e estar abertos às contribuições de antropólogos sociais, juristas, lideranças indígenas, representantes do Ministério Público Federal, da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), dentre outros interessados. Atualmente, são muitos os casos de violação dos direitos dos povos indígenas no Brasil. Por conta dessa situação, o repatriamento de bens arqueólogos ainda não está na pauta das principais reivindicações da maioria dos movimentos indígenas. A preocupação maior recai sobre outros assuntos, como direitos territoriais, educação intercultural, assistência à saúde, sustentabilidade e geração de renda etc. No entanto, não podemos negar o fato de haver por todas as regiões do país, como acontece no Centro-Oeste, Norte e Nordeste, manifestações pelo repatriamento de bens arqueológicos resgatados em áreas afetadas por projetos desenvolvimentistas, especialmente hidrelétricas.
Na verdade, a situação vivida pelos povos indígenas no Brasil é marcada pelo que o sociólogo mexicano Pablo González Casanova (1963, 2006) tem chamado de colonialismo interno. Este termo foi pioneiramente aplicado na antropologia social brasileira por Roberto Cardoso de Oliveira (1978 [1966]) e se constituiu em um paradigma para a compreensão das relações sociais e de poder, práticas e saberes que marcam a relação do Estado Brasileiro e da sociedade nacional para com minorias étnicas. Tais relações são caracterizadas por múltiplas estratégias de exploração e submissão de povos e comunidades tradicionais a uma ordem que desrespeita seus direitos em nome da “civilização” e do “progresso”. Em minha opinião, o colonialismo interno é um conceito importante para pensarmos a própria relação da arqueologia brasileira para com os povos originários das Américas.
Neste sentido, discutir o repatriamento de bens arqueológicos a sociedades indígenas requer, inicialmente, rememorar o surgimento da própria arqueologia em países como Alemanha, Estados Unidos, França e Inglaterra, onde também houve o desenvolvimento de escolas ligadas à antropologia social ou cultural. Isso porque lá a arqueologia esteve ligada à idéia de monumentalismo e, consequentemente, à pilhagem de bens arqueológicos de povos e territórios submetidos à dominação colonial. Não por menos a Recomendação de Nova Delhi, de dezembro de 1956, tratou do assunto e assinalou a necessidade do repatriamento de objetos aos países de origem, com destaque para bens que provêm de pesquisas ilegais. Ao mesmo tempo, nesses países a antropologia social nasceu para estudar o outro, o nativo sob a dominação colonial e sobre o qual foram construídos modelos explicativos essencialistas e a-históricos.
Exemplo disso foi o que aconteceu na antropologia social britânica sob a influência de Bronislaw Malinowski e Alfred R. Radcliffe-Brown, na antropologia francesa marcada em todo o mundo. Por isso temos de (re)pensar permanentemente sobre nossa prática arqueológica e os princípios éticos e compromissos sociais assumidos no âmbito da sociedade brasileira. Ademais, temos de adequar nosso campo do conhecimento aos novos tempos, marcados por um protagonismo político cada vez maior dos povos e comunidades tradicionais aqui existentes, como os indígenas e quilombolas. Isso levará, inevitavelmente, a mudanças de paradigmas que norteiam nossos trabalhos em universidades, museus, empresas privadas etc., com especial atenção para nossa relação com o público, no qual devem estar devidamente incluídas as sociedades indígenas.
Referências bibliográficas:
Afonso da Silva, J. 2001. Curso de direito constitucional positivo. 19ª. ed. São Paulo, Malheiros. Cardoso de Oliveira, R. A sociologia do Brasil indígena. Brasília: Editora UNB, 1978.
Eremites de Oliveira, J. 2007. Cultura material e identidade étnica na arqueologia brasileira: um estudo por ocasião da discussão sobre a tradicionalidade da ocupação Kaiowá da Terra Indígena Sucuri’y. Revista de Arqueologia, São Paulo, 19: 29-50.
Eremites de Oliveira, J. & Pereira, L. M. 2009. Ñande Ru Marangatu: laudo antropológico e histórico de uma terra kaiowa na fronteira do Brasil como Paraguai, município de Antônio João, Mato Grosso do Sul. Dourados, Editora UFGD.
Eremites de Oliveira, J. & Pereira, L. M. 2010. Terra Indígena Buriti: perícia antropológica, arqueológica e histórica sobre uma terra terena na Serra de Maracaju, Mato Grosso do Sul. Dourados, Editora UFGD. (no prelo)
González Casanova, P. 1963. Sociedad plural, colonialismo interno y desarrollo. América Latina. Revista del Centro Latinoamericano de Ciencias Sociales, México DF, 6(3):15-32
González Casanova, P. 2006. Colonialismo interno [una redefinición]. In: BORON , A. A. et al. (Comp.). La teoría marxista hoy: problemas y perspectivas. Buenos Aires, Clacso, pp. 409-434.
Holanda Ferreira, A. B. de. 2004. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio – Versão 5.0. Versão eletrônica revista e ampliada do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa correspondente à 3ª. Edição, 1ª Reimpressão. São Paulo, Editora Positivo.
Marés de Souza Filho, C. F. 1994. O direito envergonhado: o \ direito e os índios no Brasil. In Gruppioni, L. D. B. (Org.). Índios no Brasil. Brasília, MEC, pp.153-168. Santos, A. F. & Pacheco de Oliveira, J. (Org.). 2003. Reconhecimento étnico em exame: dois estudos sobre os Caxixó. Rio de Janeiro, Contra Capa.
Jorge Eremites de Oliveira
| UFGD/CNPq.
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